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Entrevista a Ana Paula Vitorino (Presidente da AMT)

12 Ago
A Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) está atenta ao evoluir do mercado dos transportes e da logística e não hesitará em intervir caso verifique a existência ou indícios de práticas restritivas da concorrência, garante a presidente, Ana Paula Vitorino, em entrevista à Revista APAT.
APAT - Atenta a abrangência e complexidade das atribuições que lhe estão cometidas, é caso para perguntar: a AMT dispõe dos meios - humanos e financeiros - para desempenhar cabalmente as suas funções? Se não, o que é que falta? No passado, as cativações criaram problemas...
Ana Paula Vitorino - Tal como foi referido na Assembleia da República, no passado dia 20 de julho, a AMT iniciou em 2021 uma reestruturação profunda, concluída no início de 2022 com a aprovação do novo regulamento de estrutura orgânica.
Foi ainda realizada uma reflexão interna sobre as atribuições base da atividade do regulador - regulação e supervisão - e a forma como a estrutura orgânica se deveria adaptar às mesmas.
Em termos orgânicos, passou-se de um organigrama com segmentação de funções e de uma “pirâmide invertida” em termos de rácio dirigentes / trabalhadores, tendo sido alcançada a redução de 23 para 6 unidades orgânicas, com evidentes ganhos de eficiência e eficácia.
Para 2022 irá prosseguir a consolidação da nova estrutura orgânica, o reforço da capacitação técnica e a digitalização de processos da AMT.
No que se refere à capacitação técnica, no âmbito deste processo de reestruturação foram igualmente identificadas as valências técnicas que seria necessário obter ou reforçar, estando já em curso três concursos para recrutamento de quadros técnicos superiores e prevendo-se que até ao fim do ano sejam iniciados procedimentos adicionais.
Também está em curso uma reflexão sobre o modelo de financiamento da AMT no sentido de reforçar a sua independência de gestão.
APAT - O que é que o “Observatório dos Mercados da Mobilidade, Preços e Estratégias Empresariais” aportará para os agentes económicos envolvidos no transporte de mercadorias e logística?
Ana Paula Vitorino - Compete legalmente à AMT “Assegurar a criação e a gestão de uma base de dados com informação atualizada sobre sectores regulados, incluindo o cadastro geral das infraestruturas terrestres e portuárias”.
O Observatório da AMT foi materializado no desenvolvimento de um sistema digital, estruturado numa lógica de Business Intelligence que, com base na recolha de dados, armazena informação de contexto de forma estruturada, mantendo séries históricas.
A criação da plataforma foi objeto de cofinanciamento a fundos europeus em 57% do valor global do projeto.
O Observatório tem por missão garantir um elevado conhecimento destes mercados, através da sua monitorização e avaliação permanentes e rigorosas, tendo em vista:
• O apoio às funções de regulação e supervisão da AMT, bem como à análise prospetiva regulatória;
• Divulgação de informação estatística, como fonte de informação sistémica para o exterior que permita promover a investigação científica e académica, a antecipação das dinâmicas e a evolução destes mercados para os agentes económicos e a promoção do aumento da literacia da mobilidade e dos transportes.
O Observatório possibilita o acesso a informação que relaciona dados e indicadores entre si, apresentados de forma interativa sob a forma de relatórios dinâmicos.
Nesta data o Observatório tem mais de 1 bilião de dados processados, 2900 indicadores e mais de 9500 entidades.
Para a maioria dos regulados, designadamente no sector da ferrovia, marítimo-portuário, sistemas de metro, vias navegáveis e infraestruturas ferroviárias, existe um histórico de 5 anos de informação.
No âmbito do transporte nacional rodoviário pesado de mercadorias, a AMT recolhe informação junto de entidades oficiais, com o IRN, concretamente dados económico-financeiros e de registo comercial das empresas, o que lhe permitirá desenvolver uma análise de concorrência e de mercado neste sector concreto.
Desenvolvido e implementado em junho de 2022, o Observatório será partilhado publicamente até ao final do ano de 2022.
Neste sentido, o Observatório aportará informação relevante para os agentes económicos envolvidos no transporte de mercadorias e logística.
APAT - Enquanto regulador, como é que a AMT acompanha / avalia a situação de disrupção das cadeias de abastecimento e os conflitos de interesses que sobressaem nestas situações?
Ana Paula Vitorino - A logística, numa perspetiva multimodal e integrada, deve ser uma peça chave do processo de múltiplas transições globais, tendo em conta as alterações dos padrões de consumo potenciados por uma economia cada vez mais digital e global.
Há que ter também em conta a necessidade de minimizar os custos externos subjacentes a milhões de entregas, incluindo, por exemplo, a redução de percursos em vazio e desnecessários.
Considera-se importante:
• Incluir no planeamento de uma mobilidade sustentável a dimensão do transporte de mercadorias, através de planos específicos de logística sustentável, em função da sua abrangência e distribuição geográfica e de acordo com infraestruturas inteligentes e interconectadas, multimodais e resilientes.
• O desenvolvimento de sistemas de informação e de pagamento interoperáveis às escalas local, nacional e global, com a plena integração dos fluxos de informação, sistemas de gestão, redes de infraestruturas e serviços de mobilidade, num novo quadro multimodal comum baseado em plataformas abertas.
Também as empresas necessitam de adaptar o seu modelo de negócio aos novos canais de distribuição e inovar na sua abordagem ao mercado, o que terá implicações ao nível da logística. Importa realçar a gestão do fluxo dos bens, transporte e distribuição, mas também de toda a informação com eles relacionada, desde a produção até ao ponto de procura, criando e mantendo viva uma cadeia de valor complexa e de tendencial excelência.
No âmbito dos portos e transporte marítimo, os respetivos mercados deverão pautar-se por uma crescente eficiência operacional, para a qual são essenciais infraestruturas e equipamentos com capacidade e acessos adequados aos mercados servidos, contando naturalmente com o recurso intensivo a tecnologias digitais e norteando-se pela sustentabilidade de, em particular no domínio ambiental.
A performance das redes de produção e distribuição depende de cadeias logísticas eficientes e de alta qualidade para a organização do transporte de matérias-primas e produtos acabados na União Europeia e além das suas fronteiras, estando a AMT atenta a esta matéria, considerando da maior relevância dispor de um conhecimento compreensivo de todo este ecossistema, de forma a fundamentar os seus poderes de regulação e supervisão.
Há que recordar o papel imprescindível dos mercados da logística durante a Pandemia de Covid-19 que garantiram o fornecimento de bens essenciais e ainda conseguiram inovar e adaptar com incrível rapidez.
Mas, não obstante essa adaptação, a Pandemia provocou disrupções a nível global, envolvendo agentes económicos e cadeias globais, o que tem sido agravado com a guerra na Ucrânia e o aumento dos custos dos combustíveis.
A AMT tem acompanhado o funcionamento das cadeias de transportes, designadamente
para efeitos de deteção de situações de disrupção ou distorção concorrencial, e nesse aspeto têm merecido a atenção os movimentos e atuação da operação de transporte marítimo.
APAT - Em particular, como vê o processo de integração vertical promovido por alguns operadores, e também a imposição de barreiras à livre contratação e ao acesso ao mercado de serviços?
Ana Paula Vitorino - Tem-se observado uma tendência de alargamento da atividade dos operadores de transporte marítimo (armadores) a toda a cadeia logística, apontando para uma integração vertical por esse tipo de operadores, ilustrada, por exemplo, com a assunção de posições de controlo sobre a gestão de terminais portuários, terminais multimodais de mercadorias ou mesmo de operadores de transportes terrestres, sendo particularmente relevante no mercado do transporte de contentores.
Os mercados do transporte marítimo e da logística são pautados por um relevante grau de liberdade no seu funcionamento, o que implica maiores desafios na distinção de práticas aceitáveis em mercado liberalizado, de práticas que restrinjam a concorrência ou confiram vantagem não aceitável a alguns agentes económicos.
Poderá, assim, ser admissível a existência de empresas que prestem serviços nas diferentes fases da cadeia logística, envolvendo vários modos, inclusivamente assumindo a responsabilidade pelo transporte de mercadorias desde a origem até ao seu destino.
Contudo, já não será aceitável que as condições de prestação, por exemplo, do serviço de transporte marítimo, visem restringir a concorrência dos operadores a jusante desse serviço, particularmente dos transitários e dos operadores de transporte terrestre.
Tal como constatado num relatório recente do Fórum Internacional de Transportes (ITF) sobre o desempenho da logística marítima, tem-se assistido no mercado do transporte marítimo internacional a um aumento significativo dos fretes marítimos a par da introdução de custos adicionais para os carregadores e transitários, tais como a aplicação, pelos armadores, de sobretaxas e o aumento das taxas de “demurrage and detention”.
Para além deste fator que induz o aumento dos custos de transporte, e que consequentemente se reflete nos preços dos produtos ao consumidor, observa-se igualmente a redução da própria fiabilidade do transporte marítimo, seja por viagens mais demoradas ou mesmo por cancelamento de algumas escalas, acarretando o aumento dos tempos de transporte e gerando problemas operacionais na cadeia logística.
Trata-se de uma matéria que requer uma especial atenção e implica o reforço da capacidade de monitorização dos aspetos concorrenciais do transporte marítimo, a par do aumento da transparência na fixação dos valores das taxas e preço dos fretes, bem como a revisão dos acordos institucionais existentes no contexto das linhas de transporte marítimo, na ótica da abertura concorrencial.
A AMT tem ações em curso nesta matéria e poderá atuar no âmbito das suas atribuições ou comunicar à AdC as suas conclusões, caso se conclua pela existência ou indícios de práticas restritivas da concorrência, tais como:
• Práticas concertadas entre empresas que tenham como objeto ou efeito, impedir, falsear ou restringir a concorrência;
ou
• Abuso da posição dominante; ou ainda
• Abuso da dependência económica.
APAT - Ao que julgamos saber, a AMT propõe-se também produzir conhecimento sobre os setores que regula, até para ajudar o Governo na sua ação. Pode adiantar algumas matérias que estejam a tratar nesse âmbito?
Ana Paula Vitorino - Tal como já referi, o Observatório tem a capacidade de produzir informação que permitirá obter um elevado conhecimento dos mercados da mobilidade e dos transportes, designadamente através da análise relacionada de dados reais da atividade, como a caracterização dos mercados, convertidos em relatórios dinâmicos e interativos. Esta informação assentará em dados públicos partilhados pelas entidades reguladas.
A AMT, desde o início da sua atividade, tem vindo a produzir um conjunto de relatórios sobre as diversas componentes do Ecossistema da Mobilidade e dos Transportes, que se encontram disponíveis no respetivo sítio da internet e dos quais se destacam:
• Relatórios mensais de acompanhamento dos mercados portuários;
• Tráfego marítimo de mercadorias no contexto da intermodalidade;
• Ecossistemas ferroviário e dos metropolitanos;
• Infraestruturas rodoviárias;
• Acompanhamento do setor do táxi;
• Direitos dos passageiros e utilizadores de serviços de mobilidade e reclamações;
e
• Controlo de compensações financeiras, entre outros.
A recolha de informação de sustentação de tais relatórios é sistemática e periódica, no sentido de obter informação o mais atualizada possível.
A AMT está empenhada na sua abertura às empresas e aos cidadãos, promovendo uma interação permanente com todos os interessados e na criação de uma verdadeira literacia sobre a mobilidade e os transportes.
Acresce, ainda, realçar a promoção de ciclos de conferências anuais e que este ano se dedicarão a temas como a mobilidade nas grandes áreas urbanas de Lisboa e do Porto, a realizar em setembro em coorganização com os municípios, e os desafios da transição energética no setor da mobilidade e dos transportes, prevista para novembro em Matosinhos.
7 - A digitalização tem criado espaço para a entrada no mercado de plataformas eletrónicas que promovem / vendem serviços de transportes de mercadorias. A AMT tem alguma intervenção prevista neste âmbito?
Ana Paula Vitorino - É  inquestionável que está aberto espaço para a promoção de políticas que induzam o aparecimento de novos mercados relevantes da mobilidade, que deem acolhimento a novos modelos de negócio e que nada obsta que não só novas empresas, mas também empresas tradicionais, inspiradas nas potencialidades que a tecnologia proporciona, criem modelos de negócio competitivos que favoreçam uma mobilidade eficiente, maximizando a utilidade para cidadãos e para empresários, na senda das posições da Comissão Europeia.
Assim, a promoção de uma regulação económica não intrusiva, baseada em regras claras, sindicáveis e estáveis, deve: 
Promover a utilização de soluções inovadoras de mobilidade, bem como de sistemas e serviços inteligentes de transportes, pugnando também pelo aumento da eficiência e transição energética e ambiental;
Garantir que a sua implementação se baseia em regras claras, objetivas e sindicáveis, quanto a direitos e deveres das partes e terceiros envolvidos, designadamente para efeito da responsabilidade das mesmas.
No que se refere a sistemas de transportes inteligentes e utilização de plataformas eletrónicas de intermediação de serviços de mobilidade, a AMT tem apresentados contributos à Comissão Europeia no âmbito de procedimentos legislativos e de avaliação, com enfoque nos mercados digitais, transporte público de passageiros, sharing e rent-a-car e tem desenvolvidos diversas ações de supervisão naqueles mercados como nos mercados do TVDE.
Têm sido constatadas questões comuns aos vários mercados, quase sempre relacionadas com o caráter transnacional e mundial da operação de plataformas, bem como com a opacidade e pouca objetividade em termos de funcionamento e utilização de plataformas, com reflexos negativos em empresas e consumidores.
É um dos objetivos de curto prazo da AMT promover esta avaliação de forma transversal aos mercados da mobilidade e dos transportes, tendo por base anteriores ações em alguns daqueles mercados.

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